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01 June 2005

 

O meu inimigo amigo

Costumo dizer que só quem me critica é que me ensina alguma coisa. Quem está de acordo comigo não me ensina nada. Quando muito, dá-me poder. Mas eu não estou particularmente interessado nesse poder que vem de muitos nos darem o seu acordo.
Desde logo, quem não concorda comigo faz-me ver isso mesmo, que há gente que não concorda comigo, que tem outro modo de pensar. A ilusão de que todos estão de acordo connosco é um dos perigos naturais. Depois, quem não concorda comigo faz-me o favor de testar a minha paciência, de me fazer experimentar os limites da minha tolerância, da minha capacidade de aceitar o diferente, de resistir aos impulsos elementares, de ser capaz de ir além das reacções primárias. Por vezes, de testar a minha capacidade de resistir à tentação de baixar ao mesmo nível donde sou ofendido. E é no trabalho de campo que faz o calo nas mãos.
Além disso, quem não concorda comigo desafia-me naquilo que eu penso, no mínimo obriga-me a pensar melhor, a organizar o meu pensamento para lhe resistir, para lhe responder, para lhe mostrar melhor o meu ponto de vista. E nesse processo eu próprio saio beneficiado. Mas quem não concorda comigo e apresenta o seu – outro – ponto de vista obriga-me a pensar aquilo que eu por mim, sozinho, não pensaria, obriga-me a explorar campos que me passariam ao lado, obriga-me a ir para lá de mim mesmo. Sim, são aqueles que estão contra mim que mais me ensinam. Os que estão de acordo comigo apenas me instalam na ilusão de que sei. E a verdade, sempre, é que é muito mais aquilo que não sei do que aquilo que sei.
Mas os amigos de quem eu mais gosto são aqueles que estão dispostos a jogarem comigo uma partida de procura comum e em comum. Só que essa é uma situação tão rara, e por isso mesmo tão preciosa...

 

É triste, mas é verdade

Eu sou como toda a gente: prefiro que digam bem a que digam mal. Mas não me preocupa muito que digam mal de mim. (Preocupo-me mais se tiverem razão.) Até é bom que digam mal, para que o ego se mantenha dentro dos limites necessários.
Também não vejo grande mal em que algumas pessoas não gostem de mim. É normal, eu também não gosto de toda a gente.
O que me incomoda, isso sim, é que haja pessoas que falem do que não sabem, sem se darem ao trabalho de se informarem, sem terem respeito pelos outros. Isso, sim, é grave. O facto de eu, por vezes, ser a vítima, isso é insignificante. Tenho obrigação de ter as costas calejadas e não dar às coisas a importância que elas não merecem. Mas há pessoas que são vítimas sem defesas.
Nunca saberemos o alcance destes carrascos inacabados. E por isso, somente por isso, é criminoso, porque cúmplice, o nosso silêncio.

 

De volta ao Ruanda

Volto ao Ruanda, agora por memória. Ver aquele filme não foi apenas ir visitar e de algum modo participar naquela luta étnica. Não foi – não é – só ali que aqueles acontecimentos fizeram história. Lembremo-nos de que muitos portugueses viveram muito de perto situações daquelas, em que o ódio fermentado tornava as pessoas capazes de tudo.
E a expressão é mesmo esta: capazes de tudo. Muito do que é o nosso comportamento não depende de um "eu" misterioso e imune à circunstâncias, mas antes do estado do meio de que participamos. «Eu sou eu e a minha circunstância», dizia Ortega y Gasset. Daí a extraordinária importância da qualidade do ambiente social em que vivemos.
Muitos dos portugueses participaram "daqueles mesmos" combates, mas por um lado diferente daquele em que agora vemos o filme. Mataram, incendiaram, vingaram... em resposta aos "terroristas" e em defesa daquilo que «era nosso». Por isso mesmo, não foi insignificante o facto de termos evitado discutir a guerra colonial. Creio que foi bom, porque iríamos encontrar muitos demónios à solta. Mas talvez também tenha sido mau, porque esses demónio ficaram presos dentro de muitos dos nossos combatentes.
Volto de novo ao Ruanada. Àquela terra que parece amaldiçoada. Para lembrar que ali se está a operar uma das maiores "batalhas de reconciliação", passe a aparente contradição. Batalha porque tarefa difícil, que pode ser ganha ou perdida, às vezes por muito pouco. De reconciliação, porque se trata de fazer as pazes entre hutus e tutsis. Como é que é possível que as vítimas possam com-viver com os carrascos? Como é que os sobreviventes do massacre podem viver em paz com aqueles que só não os mataram porque não tiveram o tempo suficiente?
Essa é a mesma questão que já se colocou aos judeus após o holocausto. E que se pode colocar a muitos africanos de hoje, sobreviventes da guerra colonial. Ou aos herdeiros morais das vítimas da Argentina, do Chile...
Mas não é só lá, algures, que estas coisas acontecem. Também cá, entre nós, se passa o mesmo, nas devidas proporções. É só porque o ambiente é outro que não se vai tão longe. Mas nós vemos, com uma nitidez impressionante, como a intolerância é a mesma e os efeitos não são os mesmos porque e apenas porque lhes é impossível.

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