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16 November 2005

 

A escumalha

Sarkozy, Ministro do Interior francês, fez o que não podia fazer: chamou "escumalha" àqueles que se manifestaram de forma violenta em Paris e arredores. E o incêndio alastrou-se como revolta.
Mas... não será verdade?
Vamos por partes. A função de um ministro não é apenas nem sobretudo fazer diagnóstico e dizer a verdade, como um médico ou um cientista. Um ministro é, também, um construtor de ordem e de futuro. Por isso, a palavra de Sarkozy, muito mais do que dizer o que é significou o que deve ser feito. A palavra de um ministro é, em muito, simbólica e profética. Quando fala anuncia e cria futuro. Ora a palavra de Sarkozy simbolizou apenas condenação e prometeu apenas condenação. Só que lhe faltou uma outra componente da palavra profética, a redenção ou a libertação.
Sarkozy cometeu um erro, não de análise sociológica, mas de acção política.
Mas, agora e aqui, o que me interessa é a análise sociológica.
Escumalha?
Escumalha é escória, restos, material desprezível, mau, vil.
Do ponto de vista social, isto é, da convivência com outros na cidade comum, estes jovens são um perigo, uma ameaça efectiva, um factor de insegurança e de medo. E meteram a cidade a ferro e fogo. Se já não se podia confiar neles, pior agora. (Falo assim de propósito, pela boca de outros. Mas anda longe da verdade?)
São jovens que estão desintegrados e marginalizados. Que foram excluídos. Não é que se tenham excluído, mas que foram excluídos. Recusados de mil maneiras.
Não se sentem franceses. Há pouco vimos nos atentados de Londres jovens que não se sentiam ingleses. Mas porque não?
A identidade e a pertença, sabemo-lo desde a escola, não é um movimento originário do indivíduo. Pelo contrário, parte do olhar do outro sobre ele. Estes jovens não se sentem franceses ou ingleses (ou portugueses) porque não são sentidos e reconhecidos como tal. A identidade começa pela interiorização do e reacção ao olhar do outro. Quem é visto como estrangeiro, nunca se assumirá, por mais que o deseje, como natural.
Porquê, então, tudo isto?
Porque há nos franceses e nos ingleses, menos nos portugueses, uma auto-imagem de superioridade que apenas sabe tratar os outros como inferiores. Ainda por cima pretos, árabes e gente estranha... Além disso, porque as instituições de socialização falharam. Há muito que era habitual, pelo menos em certa regiões da França, os e as jovens sairem de casa a partir dos 14 (catorze) anos... e eram os próprios pais que os faziam sentirem-se a mais... e havia casa para os acolher. Todos? É claro que não, mas é um sinal claro de muito mais que se suspeita. A escola... bem, já aqui falei no livro "Maldito profe!" que nos mostra que, muitas vezes, pura e simplesmente não é escola. E a igreja... bem, o laicismo francês por um lado, e o tradicionalismo da igreja católica por outro, fizeram perder significado social à acção sobre as camadas mais jovens. (Não esqueço que há outras igrejas e que há movimentos religiosos muito activos, mas aqui falo da maioria dos jovens.)
Então, pergunto eu, onde e com quem poderiam estes jovens interiorizar os valores sociais, as regras de conduta de pertença, o respeito pelo outro e pela norma que rege as relações comuns, etc. Como e com quem poderiam estes jovens aprender, na vida, que são parte integrante de uma sociedade que até os seus não acolhe muito bem, quanto mais os que considera estranhos?
Porque estes jovens não querem ficar à margem da sociedade francesa. Bem pelo contrário, encontram-se por ela seduzidos, mas são por ela rejeitados.

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